Enfadonha... Homenagem ao Dia Internacional da Mulher













Autor: Themistocles Silva Neto.

A minha mulher emplacou num emprego, carteira assinada, essas coisas. Isso fez com que eu, já trabalhando em casa, tomasse as rédeas de sua manutenção. Uma experiência natural nestes tempos feministas, onde se torna cada vez mais comum os homens dividirem as tarefas domésticas e o sustento da casa com as mulheres. Confesso que tem sido um ensaio excitante.

Eu sempre pensei que a intuição feminina para perceber detalhe no nosso comportamento fosse um atributo especial só delas. Mas não, entendi que a rotina de um “ser” ou “estar sendo” “do lar” é pobre de expectativas a ponto de quaisquer banalidades não passarem despercebidas. Assim, não me contive e devolvi a ela uma daquelas brincadeirinhas insinuantes, que já ouvira coisa parecida algum dia, repletas de ironia e verdade:

“Nossa, quanta produção, quem é o felizardo?” Ridículo... Bem...

Dedico a parte da manhã para cuidar das coisas do lar. Começo lavando a louça. Essa tarefa dura mais ou menos uma hora, porque a minha louça é pré-aquecida com água fervendo. Não, eu não quero ser melhor do que ela não. Apenas tenho pavor de gordura e procuro ser muito caprichoso em todas minhas empreitadas. Depois limpo o fogão, varro o chão e passo o pano. Outro dia me peguei falando pras crianças:

― Cuidado com a minha cozinha!

Mas estas coisas enfadonhas eu resolvo às quintas-feiras com o meu analista.

Descobri um prazer sem igual, aliás, mais do que isso. Posso dizer que uma experiência telúrica: catar feijões. Isto mesmo, depois da faxina na cozinha, eu dei uma geral na sala e nos quartos até retornar à cozinha para fazer o almoço. Catar feijão é uma terapia para a gente, sabe? Há um processo de transe que está quase me fazendo entrar em contato com o cosmo. Mas tem um efeito colateral: meu processo de seleção de pedras e caroços estragados é muito rígido. Chego ao ponto de, às vezes, chamar um dos meus filhos para uma segunda opinião. Mas a minha mulher outro dia brigou comigo porque um quilo de feijão só estava dando para uma refeição:

― Você tem que economizar! ― Disse ela em tom grave como via o meu pai fazer com a minha mãe.

O problema maior tem sido adequar às crianças. Todas na casa dos vinte. Tenho usado o método de argumentação comparada. É mais ou menos assim:

― Se eu não obedecesse ao meu pai, levava uma surra! Certa vez, quando a sua avó ficou doente, nós tivemos que assumir todas as tarefas da casa! ― ou ainda ― Lá em casa as coisas não eram como hoje não, Coca-Cola todo dia? Nada, só de vez em quando! Papai trabalhava muito, eram muitos filhos.

Até que um dia tive que ouvir um deles dizer:

― Caraca... Pai, sua infância deve ter sido uma merda, hein?

Como eu sou da geração diálogo, ou seja, dos otários que achavam que os pais eram muito repressores e agora vemos que eles até pegavam leve demais, em vez de ficar puto, ri batata baroa.

Outro dia saí para comprar vela nova para o filtro. Sinto pela confissão patética da minha condição de classe B com passaporte para C que ainda abastece a casa de água potável com aquele rudimentar objeto de barro. Resolvi entrar num bazar de 1,99. Não achei a peça, mas saí com algumas coisinhas interessantíssimas. Um descaroçador de azeitonas “três por vez”, uma colher de pau de um metro e, para finalizar, uns incensos de citronela, que estavam uma bagatela.

Em seguida, fui ao mercado comprar alguns itens, apenas para manutenção da despensa. De repente, me vi sem os óculos e perguntando a um rapazinho o preço da lata de milho. Exato, estendi a lata aos seus olhos. Depois, sem nenhuma justificativa comentei com uma idosa dona de casa, então colega, sobre o absurdo do aumento do preço dos tomates.

Mas essas coisas enfadonhas eu resolvo às quintas-feiras com meu analista.

Passaram-se três meses e a coisa começou a virar rotina. O trabalho de casa já me tomava também o turno da tarde. Roupas na máquina e óleo nos móveis... Meu amigo Douglas, editor do jornal, me mandou um correio eletrônico:

― E aí cara, você não tem mandado nada!

A situação financeira continuava crítica e eu comecei a maldizer as tarefas do lar. Um mau humor se instalou em mim. No final do mês piorava e se misturava a um estado de muita sensibilidade, chorava copiosamente defronte à pilha de louças. Segundo meu analista eu estava com TPS, ou seja, tensão-pré-salarial, algo já consagrado e que consta inclusive na literatura médica. Além disso, ele achava que o excesso das demandas do lar veio a produzir uma crise de identidade masculina em mim e, assim, aumentando o estresse. Mas a coisa foi ficando mais grave, comecei a surtar. Um dia, sentado à mesa com os feijões derramados para catar, gritei e varejei tudo no chão. ― Ele está possuído pelo diabo. ― disse meu vizinho, o Pastor Besouro, vim saber depois.

Neste dia, passando a crise fui fazer os pastéis do almoço e quando descaroçava as azeitonas, o aparelho quebrou no segundo grupo de um trio das melhores portuguesas. Varejei o objeto longe, acertei o basculante quebrando um de seus vidros. Em seguida peguei o gato em flagrante se aproveitando da minha distração, com a boca na carne moída sobre a pia e que ia preparar para fazer a porra do pastel. Peguei a colher de pau de um metro e quebrei na traseira do bicho, que largou o naco e saiu grunhindo. Em alto estado de ansiedade, sentei e respirei fundo, lembrei-me daqueles ensinamentos dos tempos inúteis de yoga, ou yôga...? Dane-se! Inspirar e expirar pelo abdomem, é isso. Ah! Acendi um incenso de citronela!

Logo, já havia preparado a carne com o que foi possível e recheei os pastéis. Comecei a fritura. Num certo momento me deu remorso e fui me acertar com Fernando, o gato. Ele me esnobou por dois dias até vir massagear minha barriga agulhando-a à noite na cama. Fernando foi uma homenagem ao Gabeira cometida por minha filha na fase da esquerda festiva, o bicho já está com treze anos! Enfim, nesta, queimei a primeira leva.

Na segunda, senti uma baita coceira no olho direito. Fui ao banheiro, um mosquito me picou, ardia a coisa. Passei álcool, ardeu dentro dele. Voltei para cozinha, queimou a segunda leva e óleo estava preto. Fui trocar e percebi que esqueci este item lá no mercado e no final das contas o prato principal foram ovos estrelados. À noite, eu e minha mulher conversamos sobre o dia e a possibilidade de se contratar uma empregada, ou ainda, sobre uma possível internação minha em regime de urgência. Porém, o orçamento ainda não permitia nenhuma das duas coisas e eu abominava a ideia de ter uma doméstica me inquirindo o dia inteiro como aprenderam com as serviçais das novelas das nove.

Ao cair das tardes devia ir para o computador escrever meu artigo, mas estava tão cansado que acabava indo para frente da TV. Foi assim por vários dias até que percebi que não conseguia ficar um deles sem assistir a tal novela. E, em seguida a morbidez: Desastres aéreos na Discovery Channel. De manhã me prendi ao programa da Ana Maria Braga, que receitas! Em contrapartida rezava pelo passamento do louro... E do pastor que ainda repetia os salmos 23 todas as noites!

Mas essas coisas enfadonhas eu resolvo às quintas-feiras com meu analista.

Passados mais dois meses, a situação começou a melhorar e conseguimos contratar uma empregada, consenti sem resignação. Enfim, pude me dedicar só ao trabalho e me livrei definitivamente das tarefas domésticas. Dona Maria não era o ideal, mas além de ser tímida e falar muito pouco, era muito prestimosa e limpava meus livros. Cozinhava direitinho, embora suas almôndegas não chegassem aos pés das minhas. Um dia, meu amigo Douglas me ligou e eu o convidei para almoçar. Era uma segunda-feira, me lembro pelo tédio dos domingos de Fausto Silva e Luís Penido na rádio Tupi, transmitindo mais um desastre do meu Botafogo contra o Quinze de Piracicaba no brasileirão, serie B. Pedi que a Dona Maria fizesse berinjelas recheadas, que sabia que ele gostava, pois elogiava as da minha mãe nos velhos tempos. Em resumo: foram as piores que já comemos na vida. Elegantíssimo com sempre fora, meu amigo disse sobre meus eufemismos: “Você é exigente demais.” Depois da vergonha, Douglas foi embora e eu fui falar com ela. À moda de uma perua enlouquecida, com vaidade desmedida, típica das classes opressoras, perdi as estribeiras e proferi alto e grosseiramente para ela:

― Caramba Dona Maria, mas que merda! Onde diabos a senhora arranjou esta merda de receita? Malditas berinjelas empapadas!

Percebi que passei de “dono de casa” ao correspondente masculino de uma Madame do núcleo do mal das novelas que via. Passada meia hora fui pedir desculpas, mas em vão. Ela pediu as contas, peremptoriamente! Isso pesou à minha consciência, como se perdesse uma turbina precisando arremeter com urgência. Daí passei a contar cada dia como um presidiário, fazendo um xis no meu postite de tela, torcendo que chegasse logo quinta-feira!


Do livro "Chagas Crônicas das Almas", de Themístocles Silva Neto

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